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Populações Quilombolas em Tempos de Covid-19:O Racismo Estrutural como Desafio para os Direitos Humanos

  • Hilton P. Silva
  • 14 de jan.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 3 de mar.

Em janeiro de 2020 a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a existência de uma pandemia causada por um tipo recém-identificado de Coronavírus denominado SARS-Cov-2, causadora de uma Síndrome Respiratória Aguda Grave denominada Covid-19.

 Ao final do primeiro semestre de 2020, o Brasil se tornou o segundo país em número de casos de Covid-19 no mundo, atrás apenas dos EUA. Na primeira semana de agosto já eram mais de dois milhões de infectados confirmados e foi ultrapassada a marca de 100 mil mortos. Até 2022 foram mais de 700 mil mortos, o segundo maior número do mundo.


Os negros e indígenas foram os grupos mais afetados no país. No caso das populações negras rurais, segundo o IBGE são quase 6 mil comunidades e mais de 1 milhão de pessoas, mas uma pequena minoria territórios está oficialmente delimitado. Na região norte, são mais 800 identificadas pelo IBGE, sendo o Pará, o 4º maior estado em número de quilombolas no país. Com a divulgação dos dados do Censo de 2022, pela primeira vez se saberá muito mais sobre esses grupos.


Na região norte, em particular no Pará, um dos estados mais atingidos pela Covid-19, o número de casos nas comunidades quilombolas, populações ribeirinhas e indígenas cresceu rapidamente nos primeiros dois anos em função das grandes distâncias, dificuldades de acesso, algumas vezes apenas por via fluvial ou aérea, da crônica falta de infraestrutura de saúde nos quilombos e nas prefeituras menores, que se somou a histórica ausência de políticas de Estado para essas populações.


O Pará é emblemático da situação nacional, pois é o estado que tem o maior número de áreas quilombolas tituladas. Os títulos coletivos abrangem mais de seis mil famílias em 64 municípios. De acordo com a Malungu (Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará) e o Núcleo Sacaca da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), apesar dos esforços da CESIPT/SESPA, o estado concentrou um terço das mortes de quilombolas do país. Infelizmente, como não houve testagem adequada ou suficiente, o número de casos e potencialmente mortes não notificados no interior do estado, como nos demais estados da Amazônia, permanece incalculável. Estima-se que, na população brasileira em geral houve um número de mortes por Covid-19 pelo menos 30% maior do que os valores oficialmente anunciados. Como não havia registro sobre quilombolas em qualquer sistema, é impossível saber quantos efetivamente já foram vítimas da pandemia.


No Brasil, segundo dados do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, de acordo com informações disponíveis nas bases de dados do Ministério da Saúde, 54,8% das pessoas negras internadas com COVID-19 morreram, enquanto a taxa de letalidade entre as pessoas brancas no mesmo período foi de 37,9%. Muitos quilombolas pelo Brasil morreram sem sequer chegar aos hospitais e até 2022 não havia qualquer sistema de registro oficial para esse grupo nos formulários de notificação, o que torna inclusive esses valores subestimados.

Segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Rurais Quilombolas (CONAQ) e o Instituto Socioambiental (ISA), até junho, a taxa de letalidade estimada entre os quilombolas foi de três a cinco vezes a do Brasil. Sobretudo morreram os idosos, que representam a memória e a história das comunidades. Perdas irreparáveis.


Diferente das comunidades indígenas, para as quais existe uma legislação própria de apoio e financiamento (ainda que precariamente implementados) através do subsistema de saúde indígena, no caso dos grupos quilombolas não há qualquer previsão dentro do Estado de regulamentação ou orçamento para suas demandas, o que torna ainda mais difícil a mobilização de recursos para atender as necessidades em tempos de pandemia ou de catástrofes ambientais, como as ora em curso na Amazônia, uma vez que eles têm que ser disputados, palmo-a-palmo, com as outras demandas das secretarias de saúde e de outras pastas.


Como no resto do país, a maioria das comunidades paraenses optou pelo autoisolamento, montando barreiras sanitárias com voluntários, buscando manter estranhos fora e seguir normas de quarentena para quem tivesse que sair para buscar alimentos, medicamentos, ou levar parentes para os hospitais. Um exemplo notável de auto-organização social. Mas como a Atenção Básica sempre foi precária nessas comunidades e há muitas pessoas com doenças crônicas como hipertensão, diabetes, doenças mentais, neurológicas e doença falciforme, que precisam de acompanhamento médico regular e medicações, que não estão disponíveis nas comunidades, muitas pessoas sofreram por falta de atendimentos. Essas pessoas, que já se encontravam com a saúde fragilizada, também estavam nos grupos de risco para a Covid-19, o que aumentou sua chance de morrer ao contrair a doença na busca por serviços de saúde nas áreas urbanas. Por outro lado, as barreiras sanitárias também enfrentaram resistência jurídica, já que muitos territórios não são oficialmente demarcados, e durante a pandemia foram registrados casos de invasão e aumento dos conflitos em algumas áreas que desejavam manter seu isolamento.


As populações quilombolas dependem, sobretudo, da agricultura e da pesca para sua sobrevivência. Sem poder sair para vender seus produtos, muitas comunidades sofreram ainda mais com insegurança alimentar e nutricional, apelando para vaquinhas na internet, feitas com apoio de ONGs, associações quilombolas, pesquisadores, ativistas e estudantes na capital, para a aquisição de cestas básicas e kits de higiene para distribuir entre as famílias necessitadas, já que grande parte não teve acesso ao auxílio emergencial do governo federal (menos de 12%, segundo a CONAQ), pois em muitas áreas não há eletricidade, acesso a telefonia ou internet e muitas pessoas não tem telefone, CPF e/ou são analfabetas e não conseguiram fazer o cadastro. Outras, quando conseguiram se cadastrar, muitas vezes com apoio de forças tarefa dos mais jovens das associações, não conseguiram se deslocar até a cidade para acessar os recursos por falta de transporte, de dinheiro ou medo de trazer o contágio para a comunidade na volta. Muitos outros não conseguiram completar os procedimentos por diversas razões econômicas e sociais.


Apenas em maio de 2020 foi aprovado na Câmara dos Deputados um Projeto de Lei (PL 1142/2020), estabelecendo um plano emergencial para o enfrentamento da Covid-19 nas áreas indígenas e entre os povos e comunidades tradicionais, incluindo os quilombolas. Ele foi votado no senado em junho, e no dia 7 de julho foi sancionado pela presidência da república como a lei 14.021/2020, com tantos vetos a pontos fundamentais, que já nasceu como mais uma letra morta para os povos das florestas e das águas se não fosse pela pressão das associações e entidades representativas dos Negros e quilombolas que conseguiram dialogar com diversos setores para reverter alguns vetos no Congresso.


Em face da ausência de iniciativas oficiais em todos os níveis para apoiar as populações quilombolas durante a pandemia de Coronavírus, as associações locais e organizações nacionais, como a Malungo, a CONAQ e o ISA, foram os principais articuladores das ações e mobilizações voltadas para as populações negras rurais. Demonstrando o poder de articulação da sociedade civil organizada, essas organizações conseguiram mobilizar desde a arrecadação e entrega de cestas básicas e kits de higiene a comunidades em todo o país, até a articulação política necessária para retirar os vetos presidenciais à lei 14.021/2020 e propor uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 742) para obrigar o governo federal a prestar assistência em relação à Covid-19 e prover vacinas prioritariamente para os quilombolas, passando pela preparação e distribuição de cartilhas informativas com linguagem adequada, organização de barreiras sanitárias nas comunidades, organização de demandas junto aos estados e municípios para prestação de assistência médica, suspensão de despejos e garantia de outros direitos.


Embora durante a pandemia não houvesse qualquer registro oficial no país sobre a situação das populações quilombolas, uma vez que não havia um órgão ou política específica voltados para essas comunidades, pesquisas feitas por diversos membros do Grupo de Trabalho sobre Saúde e Racismo da Abrasco (GT Racismo e Saúde), em vários estados, mostraram que a saúde das populações quilombolas já estava anteriormente fragilizada, em função de sua situação socioeconômica e ambiental e do histórico racismo ambiental, estrutural e institucional vigente no país.


Em geral, de sul a norte do país, os afrodescendentes apresentam rica história de lutas pela preservação dos recursos naturais, por sua cultura e vastos conhecimentos tradicionais, porém sofrem com elevadas taxas de doenças infecciosas e crônicas, insegurança alimentar, ausência de saneamento ambiental e infraestrutura hidráulica e elétrica, vivem em moradias precárias onde qualquer tipo de isolamento social intrafamiliar é impossível; há grande dependência de programas de transferência de renda, baixa escolaridade e acesso muito limitado a serviços de saúde e Atenção Básica regular. Pesquisas promovidas pela Abrasco mostraram que houve uma redução da ação dos Agentes Comunitário de Saúde em campo durante a pandemia, sendo que estes são a única fonte de serviços de saúde para muitas comunidades. A saúde enquanto um direito humano fundamental, como previsto na Constituição Federal de 1988 nunca existiu nos quilombos.


Infelizmente, para a maioria das comunidades negras rurais brasileiras, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) e o Estatuto da Igualdade Racial são letra morta. Elas não existem nas prefeituras, nas escolas ou nas secretarias de saúde, ou nas cabeças dos gestores, onde "todos são tratados iguais", mesmo diante de sua profunda e evidente desigualdade cotidiana.


No cenário nacional, menos de 30% dos municípios tem alguma ação prevista no seu plano plurianual sobre a PNSIPN, e a taxa de notificação do quesito raça/cor nos registros oficiais de saúde varia enormemente. Entre 2019 e 2022, a Fundação Cultural Palmares, que deveria liderar os esforços para a proteção das comunidades quilombolas, demitiu servidores e se viu envolvida em controvérsias, pois seu presidente e diretores se posicionaram com frequência contrários aos movimentos sociais e suas agendas em defesa da população negra. O Ministério da Saúde demorou para implementar o quesito raça/cor nas fichas de notificação de Covid-19, só vindo a fazê-lo após ser pressionado pela Abrasco e organizações do Movimento Negro, e até agosto de 2020 não havia emitido qualquer diretriz específica sobre o combate a pandemia nas populações quilombolas, inclusive resistindo a lhes dar prioridade quando a vacina foi disponibilizada.


Acostumadas a lidar com a ausência e a necropolítica do Estado, as comunidades recorreram às suas tradições culturais históricas, sua religiosidade, seus conhecimentos etnobiológicos, sua solidariedade mútua e sua resiliência, para continuar o racismo estatal e mais essa "doença de branco".


O Plano Nacional de Igualdade Racial, o Estatuto da Igualdade Racial, a PNSIPN, o Estatuto da Equidade Racial do Pará, entre outros, reconhecem que o racismo institucional existe, tem graves impactos na vida e na saúde das pessoas e precisa ser urgentemente superado no país. No entanto, passados mais de 130 anos da abolição formal da escravatura no país, mais de três décadas desde a promulgação da Constituição Cidadã, da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), e na vigência da Secunda Década Internacional dos Afrodescendentes da ONU (2025-2034), o racismo estrutural perdura no Brasil e as populações quilombolas continuam a ter que lutar cotidianamente para que seus direitos fundamentais sejam respeitados e sua saúde garantida pelo Estado.


A implementação do Observatório dos Direitos Humanos do Pará é um marco fundamental para que as políticas públicas venham a ser respeitadas e adequadamente implementadas no estado. A criação da Secretaria de Igualdade Racial e Direitos Humanos do Pará demonstrou um compromisso de vanguarda com dois dos mais importantes temas da atualidade, o respeito aos Direitos Humanos e a luta antirracista. Os desdobramento das ações da SEIRDH, monitorados pelo Observatório, colocarão a Amazônia em foco não apenas por suas riquezas naturais, mas também pelas ações concretas para a proteção dos povos das florestas e de todas as pessoas deste imenso território chamado Pará.


Este artigo é tributário da Nota Técnica sobre a saúde das populações quilombolas preparada para o Grupo Temático Racismo e Saúde da ABRASCO, contando com apoio institucional do Fundo de População das Nações Unidas no Brasil (UNFPA).


Prof. Dr. Hilton P. Silva

Docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva na Amazônia (PPGSCA) e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Pará (UFPA), e do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) da Universidade de Brasília (UnB), Coordenador do Laboratório de Estudos Bioantropológicos em Saúde e Meio Ambiente (LEBIOS), Membro do Grupo Temático Racismo e Saúde da ABRASCO e da Área Científica de Saúde da ABPN

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