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Direitos humanos na agenda do clima no Brasil: uma ausência sentida

  • Cristina Yumie Aoki Inoue, Marina Ramos Dermmam, Thais Lemos Ribeiro e Veronica Korber Gonçalves
  • 30 de dez. de 2024
  • 7 min de leitura

Atualizado: 3 de mar.

Se o Brasil quiser ser protagonista na agenda de mudanças climáticas e apresentar compromissos compatíveis com o teto de 1,5ºC, seja na frente de mitigação ou na de adaptação, deve o ser também na agenda de direitos humaSe o Brasil quiser ser protagonista na agenda de mudanças climáticas e apresentar compromissos compatíveis com o teto de 1,5ºC, seja na frente de mitigação ou na de adaptação, deve o ser também na agenda de direitos humanosnos

“Sempre que uma floresta estiver em pé no Brasil, isso é graças ao trabalho de pessoas defensoras de direitos humanos”. Este é um trecho das Observações e Recomendações preliminares da Relatora Especial das Nações Unidas sobre a situação das pessoas defensoras de direitos humanos, Mary Lawlor, em missão realizada no Brasil em abril de 2024. Esta afirmação é provocadora quando os três poderes do Estado brasileiro assinaram um Pacto pela Transformação Ecológica. Mais ainda considerando que a nova versão do Plano Clima está sendo debatida amplamente por meio de plenárias presenciais e processo participativo virtual, e que passaremos pela revisão da Contribuição Nacionalmente Determinada – NDC no âmbito do Acordo de Paris.

As agendas de clima e direitos humanos no Brasil precisam avançar conjuntamente. As emissões de gases de efeito estufa no Brasil são compostas majoritariamente pelos setores de agropecuária e mudança de uso da terra e floresta. Em 2022, de acordo com dados do Observatório do Clima, estes setores responderam por 65% do total de 1,7 milhões de toneladas de CO2. Ao mesmo tempo, é preciso lembrar que o Brasil é um dos países onde mais defensores das florestas são assassinados no mundo. De acordo com a ONG Global Witness, 34 foram mortos em 2022 no Brasil, sem contar ameaças, invasões e todos os tipos de violências.


Dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, publicado no Observatório Nacional de Direitos Humanos indicam que mais da metade das pessoas inseridas no Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas são povos indígenas e comunidades tradicionais e mais de 70% estão no programa devido a atuação em conflitos no campo. Além disso, dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos também publicados no ObservaDH indicam que a principal motivação para denúncias entre 2020 e 2024 foram crimes ambientais (20%), relacionados a expansão urbana, expansão agropecuária, extrativismo mineral e vegetal, e caça, seguidos por conflitos agrários (19%) relacionados também a expansão urbana, expansão agropecuária e regularização fundiária.

Assim, se o Brasil quiser ser protagonista na agenda de mudanças climáticas e apresentar compromissos compatíveis com o teto de 1,5ºC, seja na frente de mitigação ou na de adaptação, deve o ser também na agenda de direitos humanos.

Dentre os compromissos do Pacto pela Transformação Ecológica, estão aceleração do ordenamento territorial e fundiário, medidas de celeridade e segurança jurídica em procedimentos administrativos e processos judiciais, estrutura e capacidade institucional, geração de trabalho e elaboração de estratégias de adaptação com especial atenção a populações em situação de vulnerabilidade. No entanto, a expressão “direitos humanos” não aparece uma vez sequer no documento.

Já a versão preliminar do Plano Clima tem como visão colocar “o Brasil na trajetória de ser um país resiliente, sustentável, seguro, justo e desenvolvido, com o governo e sociedades engajados diante de um clima em mudança.” O plano apresenta a transição justa como estratégia transversal para a ação climática e define justiça climática como um eixo norteador, com “enfoque plural sobre as relações e desigualdade sociais e institucionais históricas que produzem as alterações climáticas, tornam as pessoas vulneráveis às ameaças e moldam as respostas às mesmas.” Dentre os objetivos específicos do Plano, há o enunciado de direitos como segurança alimentar e hídrica, bem-estar de populações e redução de desigualdades. Dentre os princípios, está a promoção da justiça climática com perspectivas de gênero, raça, etnia, idade, classe social e territórios. Ainda, na Estratégia Nacional de Mitigação, há previsão de análise de impactos socioeconômicos do plano. Neste documento, contudo, também não há uma menção sequer aos direitos humanos de maneira direta.

O Plano Clima foi submetido a consulta por meio da plataforma Brasil Participativo entre os dias 5 de junho e 17 de setembro de 2024. Dentre as 1.290 propostas apresentadas, apenas oito[1] têm menção direta a direitos humanos. A busca de propostas sobre justiça climática gera resultado maior (17) e quantidade superior de votos[2].

A ausência de diálogo entre a agenda do clima e de direitos humanos não é novidade. Os princípios e objetivos da Política Nacional da Mudança do Clima (Lei nº 12.187/2009) mencionam a participação cidadã, o desenvolvimento sustentável, distribuição de ônus e encargos de modo equitativo e equilibrado, o atendimento às necessidades comuns e particulares de populações e comunidades e a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a proteção do sistema climático. A PNMC não trata, porém, o combate e a adaptação às mudanças climáticas como essencialmente relacionados à realização de direitos humanos.

O Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM), criado em 2023, é o órgão responsável por coordenar as estratégias do Brasil no combate às mudanças climáticas, incluindo a definição das contribuições nacionalmente determinadas no âmbito do Acordo de Paris e a implementação da PNMC. Os Ministérios da Mulher, da Igualdade Racial e dos Povos Indígenas passaram a fazer parte do CIM a partir de junho de 2024, quando houve alteração da composição do CIM. Já o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania não faz parte do CIM.[3]

A relação de reforço entre a proteção de um meio ambiente sustentável, limpo e saudável e a promoção, proteção e defesa dos direitos humanos é tema presente tanto nas resoluções da Assembleia Geral quanto no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.[4] No caso do Brasil, a relação entre as agendas deve acontecer para além de enunciados de vontade abstratos como está no Pacto pela Transformação Ecológica, em que a questão aparece sob o guarda-chuva da justiça social, ambiental e climática, apresentadas sob um enfoque de justiça distributiva, de redução de desigualdades e distribuição mais equitativa de benefícios do progresso econômico.

O discurso do Presidente Lula na abertura da 79ª Assembleia Geral das Nações Unidas reforça uma visão parcial de justiça, com enfoque distributivo, ao mencionar por exemplo, a tradicional ênfase no argumento de que o país possui a matriz energética mais limpa. Uma consulta ao Atlas de Justiça Ambiental[5] apresentou mais de 20 casos de barragens ou conflitos sobre água no Brasil, dentre eles casos relacionados a hidrelétricas como Balbina, São Luis do Tapajós, Teles Pires, Dardanelos, Jirau e Santo Antônio, e Belo Monte, dentre tantos outros. A métrica da justiça distributiva, ao ser utilizada como parâmetro para a “transformação ecológica” do país, torna palatável essas consequências, naturalizando violações de direitos humanos como um mal necessário para o desenvolvimento – ainda que limpo, a partir do enfoque na contabilidade de carbono emitido.

Em resumo, a justiça, terminologia utilizada no Plano Clima e no Pacto pela Transformação Ecológica, é orientada por princípios de proteção que definem o que é o bem e para quem ele é devido. Os direitos descrevem as regras para a implementação da justiça. Apesar destes documentos apontarem avanços nas frentes de justiça social e retributiva, a política pública para enfrentamento da mudança climática no Brasil deveria reforçar que fará a transição ecológica junto com a promoção, a proteção e a defesa dos direitos humanos e o reforço dos compromissos com os quais o país é signatário, pois estas agendas se reforçam.

Um posicionamento mais assertivo sobre a relação entre as agendas do clima e direitos humanos resultaria, por exemplo, na mudança de perspectiva sobre as chamadas “externalidades negativas” na Estratégia Nacional de Mitigação – ou seja, quando políticas de mitigação envolvem, por exemplo, o deslocamento de pessoas e a ausência de consultas prévias, informadas, livres e consentidas. Na Estratégia Nacional de Adaptação, há a necessidade de revisão de arcabouços normativos, de governança e desenho de protocolos de resposta a ações emergenciais motivadas especialmente por desastres ambientais, além de previsão de orçamento em pastas marginalizadas na agenda, dentre elas os ministérios que atendem públicos em situação de vulnerabilidade e que lidam com a intersecção das agendas.

Explicitar a agenda de direitos humanos não significa reforçar uma abordagem antropocêntrica de justiça ou de direitos, desde que o conceito de justiça também se amplie para além do aspecto distributivo e reforce as questões procedimentais – como o respeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – e de reconhecimento, com destaque para saberes e visões de mundo indígenas e de comunidades tradicionais, que estão diretamente relacionadas e imbricadas com o território.

Por fim, e reflexo desta ausência sentida, há o Acordo de Escazú sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe, aprovado em 2018 e encaminhado ao Congresso brasileiro para ratificação em 11 de maio de 2023. A ratificação do Acordo é  uma oportunidade do país melhorar  suas políticas ambientais e de proteção aos defensores ambientais, e junto com o enunciado direto do Governo Federal com os compromissos de direitos humanos na agenda climática – em especial no Plano Clima, nas questões contextuais da nova versão da NDC, e nos desdobramentos do Pacto Nacional pela Transformação Ecológica – indicariam  uma posição brasileira pela mitigação e adaptação coerente, enraizada na situação atual do país e comprometida com reconstrução de ambas as agendas. A ausência sentida é oportunidade de refazer.

 

 

Cristina Yumie Aoki Inoue é Professora Associada do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) desde 1997. Atualmente é professora associada na Universidade de Radboud, Países Baixos.

Marina Dermamm é Presidenta do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), articuladora da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP/RS) e integrante da coordenação executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Marina também possui experiência profissional na administração pública municipal, estadual e federal, e exerceu o cargo de ouvidora-geral da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul (2021-2023).

Thais Lemos Ribeiro é Funcionária pública desde 2008. É Research Fellow da rede global Earth System Governance, membro do  laboratório Centro de Estudos Globais e do grupo de pesquisa Sistema Internacional no Antropoceno e Mudança Global do Clima do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).

Veronica Korber Gonçalves é Professora no Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), atualmente professora no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB). Coordena o Grupo de Pesquisa em Relações Internacionais e Meio Ambiente (GERIMA).

 

[1] A proposta com mais votos (36) se refere a novo modelo de desenvolvimento econômico, com “rompimento com o modelo de produção do agronegócio, da pesca industrial, da aquicultura, do turismo de massa, da especulação imobiliária, da produção de combustíveis fósseis, da mineração, dos parques eólicos e de energia solar”. As demais propostas tratam de protocolos de atenção à diversidade na emergência climática, proteção de defensores de direitos humanos e ambientalistas, participação de mulheres em processos decisórios, participação social por meio de conselhos de direitos humanos e ratificação do Acordo de Escazú.

[2] As propostas mais votadas se referem a tributação de maiores rendas (712 votos), promoção da agroecologia (124 votos), proteção de florestas de babaçu e elaboração de planos de adaptação e resiliência climática em reservas (85 votos cada proposta).

[3] Embora componha o Comitê Gestor do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (conforme Decreto nº 9.578/2018).

[4] Ver, por exemplo, resoluções 44/7, 45/17, 45/30, 46/7,  e 48/13  do Conselho de Direitos Humanos e A/HRC/37/59 da Assembleia Geral das Nações Unidas.


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